Mercados emergentes: Rumo a recuperação sem a China

10 de novembro de 2020

A China desempenhou um papel crucial na recuperação econômica global após a crise financeira de 2008-09, mas a recuperação pós-Covid-19 será diferente: prevemos que a China diminuirá seu envolvimento internacional nos próximos anos. Nesse contexto, Angola, Quênia, Etiópia, Equador e Gana, junto com o Brasil e a África do Sul, podem ter dificuldades para encontrar fontes alternativas de financiamento, investimento e comércio. É provável que a economia chinesa passe por transformações profundas a médio e longo prazo, devido as mudanças nas prioridades do país, desaceleração do crescimento econômico e o peso da dívida interna. Consequentemente, prevemos que o papel da China como impulsionadora do crescimento global diminuirá nos próximos anos. Para identificar o impacto dessa nova postura nos países emergentes, examinamos três canais diferentes: financiamento, investimento e comércio.

Figura 1: Vulnerabilidade à China se voltando para dentro através dos canais de dívida, investimento e comércio

Sources: national statistics, Euler Hermes, Allianz Research

Em primeiro lugar, é provável que a China abandone gradualmente o financiamento da dívida de países de baixa e média renda em meio a contínuos desafios de liquidação dos pagamentos. Para nossa amostra de dez economias, isso resultaria em um déficit de financiamento futuro de USD 47 bilhões até 2025. Na última década, o financiamento chinês para economias emergentes e menos desenvolvidas cresceu significativamente, o que correspondia com seus objetivos estratégicos e a Belt and Road Initiative (BRI lançada em 2013). Esses empréstimos definitivamente ajudaram alguns países a preencher suas lacunas de infraestrutura (por exemplo, Etiópia, Quênia, Zâmbia). No entanto, a China também emprestou muito capital a países com alto risco de inadimplência, como Argentina, Equador e Angola. Esses empréstimos às vezes eram lastreados em recursos naturais, garantindo que os países mutuários desfrutassem de taxas de juros aceitáveis, dependendo de uma classificação de crédito sensível. Mas a maré mudou em 2020 (mesmo antes do surto de Covid-19), com crescentes dificuldades para receber e renegociar as dívidas. A inadimplência parcial em curso e os diferimentos de pagamento certamente pavimentaram o caminho para uma queda lenta nos empréstimos estrangeiros, acompanhada por uma estratégia de crédito mais seletiva. De fato, a reestruturação dos empréstimos comerciais chineses parece complexa e gera perdas importantes para a China. Além disso, o confisco material commodities e/ou ativos por entidades chinesas revelou-se difícil de implementar na prática.

Para cada um dos dez países em nossa amostra, usamos a parcela da dívida externa com a China na dívida externa total, como uma maneira de representar o envolvimento chinês. Obtivemos um déficit de financiamento total de USD 47 bilhões (ver Figura 2), representando 1,4% do PIB total desses países em 2019. Isso representa um déficit de financiamento de 7% do PIB em 2019 no Quênia, 6% em Angola e quase 5% na Etiópia e Zâmbia. O déficit de financiamento é responsável por 2,2% do total das necessidades de financiamento estrangeiro previstas de nossa amostra até 2025. Esses países teriam que obter financiamento de outros credores para refinanciar os grandes montantes de Eurobonds com vencimento em 2022 e 2023. No entanto, os já elevados níveis de endividamento dificultariam a compensação dessas lacunas de financiamento relacionadas à China.

Figura 2: Lacuna projetada de financiamento da dívida pela China em 2021-2025

 Sources: various, Euler Hermes, Allianz Research

Em segundo lugar, a desaceleração da economia chinesa e o maior controle sobre o investimento estrangeiro podem colocar o Quênia, o Equador e Gana em maior risco na próxima década. O Investimento Estrangeiro Direto da China (OFDI) aumentou depois de 1999 com a política de “saída”, segundo a qual a China relaxou ou eliminou muitas regras sobre investimento em outros países e o promoveu ativamente. De acordo com fontes oficiais, o nível de IED não financeiro da China aumentou oito vezes de 2009 a 2018 (de USD 246 bilhões para USD 1.982 bilhões). No entanto, os fluxos de IED diminuíram nos últimos anos e, embora não esperemos que a estratégia de dupla circulação da China interrompa o IED nos países emergentes, ela pode continuar a desacelerar por quatro motivos:

  • Após os sustos com o renminbi em 2015-16, o governo agiu para apertar a regulamentação dos IED de modo a controlar as saídas de capital. Estabeleceu limites para os investimentos das empresas estatais no exterior.
  • Houve desafios de implementação no BRI, agora exacerbados pela crise da Covid-19. Esses desafios provavelmente exigem que o investimento estrangeiro seja mais disciplinado em torno das metas econômicas nacionais, por exemplo, autonomia industrial e inovação.
  • Alguns países emergentes poderiam seguir os EUA e a UE aumentando o quanto se avalia o investimento estrangeiro e as aquisições, especialmente porque a opinião internacional sobre a China está se tornando menos favorável.
  • A desaceleração estrutural da economia chinesa e o grande impacto da dívida interna significam que o investimento externo provavelmente desacelerará.

Em nossa amostra, Zâmbia, Etiópia e Gana são os países que mais dependem (em proporção do PIB) dos fluxos de investimento da China. Esses três países notaram o aumento mais rápido no IED chinês nos últimos anos, graças ao BRI (lançado em 2013). Se assumirmos que o IED da China seguirá o mesmo caminho de desaceleração do PIB na próxima década, isso significa que, em termos absolutos, Quênia, Etiópia e Gana seriam os países com a maior perda cumulativa de IED da China até 2030, chegando a USD 63 milhões, USD 61 milhões e USD 48 milhões, respectivamente (Figura 3).

Figura 3: Perda cumulativa de IED até 2030 causada pela desaceleração chinesa

Sources: various, Euler Hermes, Allianz Research

Por último, além do impulso comercial positivo no curto prazo, a desaceleração estrutural e o reequilíbrio da economia chinesa devem desencadear uma perda cumulativa de exportações de USD 24 bilhões até 2030 para os dez países em nossa amostra. Sendo a primeira economia a entrar e sair da recessão, a China lidera a recuperação global da crise da Covid-19 em 2020. A forte retomada da economia chinesa desde o segundo tri de 2020 foi impulsionada sobretudo por exportações surpreendentemente resistentes, juntamente com uma atividade robusta nos setores de construção e infraestrutura. Obviamente, esses últimos setores também são uma boa notícia para os parceiros comerciais da China, principalmente para os exportadores de commodities.

No entanto, a longo prazo, a economia chinesa caminha para uma desaceleração estrutural sob o impacto da redução da oferta de trabalho e da acumulação de capital, bem como da desaceleração dos ganhos de produtividade. Estimamos que o crescimento do PIB da China fique, em média, entre +3,8% e +4,9% na próxima década (após +7,6% na década de 2010), dependendo do sucesso das reformas estruturais na elevação do crescimento potencial. Além disso, o aumento da retórica protecionista em todo o mundo, juntamente com a estratégia de dupla circulação lançada este ano, provavelmente transformarão o comércio exterior do país. Em particular, a estratégia comercial da China parece priorizar a manutenção das participações no mercado de exportação enquanto reduz a dependência das importações.

Levando em consideração essas mudanças estruturais, podemos quantificar a quantidade de demanda interna chinesa que será 'perdida' em comparação com uma situação de crescimento semelhante à de 2010 para os países que exportam para a China. Descobrimos que, em termos de valor, Brasil, Angola e África do Sul incorreriam na maior perda cumulativa de exportações até 2030, totalizando USD 14 bilhões, USD 5 bilhões e USD 2 bilhões, respectivamente (ver Figura 4). Em termos relativos, Angola, Zâmbia e Gana seriam os mais atingidos, com a perda acumulada das exportações chegando a 5,8%, 1,4% e 0,9% dos respetivos PIBs.

Figura 4: Perda cumulativa de exportações até 2030 causada por mudanças estruturais chinesas (desaceleração e reequilíbrio)

Sources: various, Euler Hermes, Allianz Research